terça-feira, 5 de janeiro de 2016

E pronto

Olhava-te com olhos de quem se esqueceu que os tem.
Ainda penso no que vi e nem acredito, sabes?
Como eras quando eras, De onde, De que pecado?

Deixavas-me exausto e sonâmbulo para o que viesse
- Vontade de mudar mundo pós-filmes, pós-saltos -
Dormia aos pedaços, não dormia.
Dormia no pedaço e enrolava no teu lençol o teu medo,
Rebolava na mentira, e porque era mentira bonita, deixava passear.

Era tudo um pela-primeira-vez-antigo. Para deuses, sabes?
Uma ternura sem dono, uma inveja dos espaços entre nós.
Era a telegrafia das horas, os passos-tambor, o fumo da manhã.
Era o desaprender de todas as linguagens.

Vi-te atacada por ti e deixei-vos lutar.
Tinha perdido o meu monstro próprio numa das garrafas.
Reclamei da mortalidade por puro capricho. Morre-se de ti.
E é tão bom que eu rio tolo-renascido, a respirar exagerado.
Um carpinteiro de recados discreto que o sonho fica de vir buscar pela noite,
mas facilita.

Não compreendi as dores disfarçadas de século, sabes? Nem o fio, nem o rosa.
Não compreendi o perfume, nem o brinco, nem o pescoço, não ainda.
Nem porque o passado, sem ter coração, tem duas mãos gordas.
Não soube, sabes?
É que te olhava com olhos de quem se esqueceu que os tem. E pronto.

(2012)

Ano meu, ano meu, anão

Ano meu, ano meu, ano teu, nosso ano, ano, aninho, anão,

Farei de ti o que não me permitas. Se me apontares a direita, presumo que adivinhas a resposta. Poderias ser o ano de sopas e descanso, mas não. Perdão. Serás ano de vendavais, outras sereias ruivas nas mesmas rochas; ano de gestos revolucionários com causa duvidosa e choro, quando o choro chegar. Serás para a vida o que o melhor vinho é para as papilas gustativas: choque, estranhamento, emoção, tesão, liberdade.

Abraço-te. Colho-te. Olho-te os olhos verdes também. Não há humanidade em estar sozinho numa casa a pensar no mundo. Estarei por aí, na rua, a misturar-te, com sal, com os teus primos mortos, com lendas do castelo, superstições e ternuras. Se tentares posar para revista de muita tiragem, ou se te apressares a comprar bolachas para o Chá das cinco, corto-te um pé e exilo-te em 2020, com os comentas. Hei-de beijar-te e morder-te num variação sem aviso. Hei-de dizer-te o que sobrar do cansaço e da esperança.

Quando vieres com ameaças de fim do mundo, respondo-te que tudo bem. Se não agora, quando? Fim do mundo seja. Tantas estrelas à espera para parir poetas. Viemos do mesmo pó e juntos ao mesmo pó voltaremos.

Entretanto, bebe um copo e junta-te à festa. Num bolso tenho duas eternidades para curtirmos nas próximas marés. No outro bolso uma folha pequena que diz: “xiu”!

Não te tomo como garantido. Não me tomes também. Sejamos corte russa, cocktail ousado, caminhada interminável, riso na catedral, sapatos grandes demais, lençóis de linho, eclipses em Nova Iorque, tradições mexicanas, atividade debaixo da mesa. Assumamos a sedução. Nenhum dos dois tem mais idade para fingir.

Aos que amo, permite, por favor, que façam de ti o que quiserem. Coloca a venda, mas deixa as algemas na gaveta. Temos uma divida gorda com o tempo e tencionamos pagar certinho em trezentas e sessenta e cinco prestações de gratidão.

Assim recomeça o mundo,

Assim recomeça o mundo,
(Barco perfeitamente adequado)
Em desmaio de frio,
Escadaria inclinada,
Abraço sem suspiro,
Poesia de contramão.

Numa compulsão de saliva, sorte e grito,
espaço mínimo entre os pés,
Na água salgada que desinfeta os sonhos.

Numa refração severa do que sustenta
Os olhos,
Do que convida as estrelas
A desabar.


(2015)

Hora H

Hora H

As tuas palavras ficaram por aí,
E não há luz na tua rua.
Desligaram as ondas,
Silêncio igual aos outros;
Não vieste. 

-

Surpreendidos ficaram os índios
ao ver os primeiros
europeus com tanta roupa.
Eu sento e aceito.

-

A Branca de Neve não mordeu
a maçã porque acreditar
que a velhinha era boazinha.
Mordeu a maçã
porque a maçã
era bonita.


(2015)

Adolesço

Nada me adormece melhor
Que o teu cansaço;
O teu amor seguro.
Esta janela de aldeia
Na maior cidade,
Os ombros colocados
Com exatidão e sacerdócio.

Fico mudo – soltem os foguetes – Fico pronto.
Durmo porque trazes certezas
E achas graça ao que tem graça
E nunca vais embora.

Não sonhei contigo.
Pertences à vida, ao frio
Ao cheiro de almoço,
Ao cabelo despenteado.

Ser adulto é ter muito medo
Da morte.

Adolesço, deitado, contigo.


(2015)

O silêncio

Com a idade, só vim a amar mais o silêncio.
O silêncio como arquitectura frágil.
O silêncio que tudo principia.
O silêncio da derrota.
O silêncio adúltero da poesia.
O silêncio que te despiu e deixou dormir ali.
Um silêncio contra feito.
Silêncio dos caminhos que não segui.
Além do silêncio perfeito.
O silêncio da veia atarefada.
O silêncio de haver oeste, de haver sul,
E não haver nada.
O silêncio como última morada.

O silêncio como tesão.
O silêncio do teu pescoço a apanhar lua.
Um silêncio sem intenção.
Um silêncio abortado em plena rua.
O silêncio abraçado muito forte.
O silêncio só terminado com a morte.

O silêncio que te prometo e não cumpro.
O silencio que prende mas não escraviza.
O silêncio, resposta de bolso.
O silêncio que o azul organiza.
O silêncio do galo que pressente.
O segundo do silêncio em tua mão
O silêncio recortado da paisagem.
O silêncio que do espanto é irmão.
O silêncio que fica pela página.
O silêncio que te pergunta do velho amor.
O silêncio que ainda não acaba ,
O último recurso para a dor.

O mundo podia ser

Invés de desumano,
O mundo podia ser um pouco
Mais estreito,
Para a gente se cruzar.

Proposta concreta:
Elefantes como reis.
O maior coração é que manda.

Invés de acelerado
O mundo poderia ser um pouco
Mais estrelado
Para a gente – chão - não ter pressa.

Proposta concreta:
Abolição do daguerreotipo.
Uma ressurreição do perfume.

Invés de azul ou verde,
O mundo podia ser um pouco
Mais de ler a sina.
Para a gente, no medo, se abraçar.

Proposta concreta:
Esquinas redondas
Por um ciúme que rode de mão em mão.

Invés de eleito,
O mundo podia ser um pouco
Mais invisível.
Para a gente tentar o contrário.

Proposta concreta:
Tocares à minha campainha bem tarde.
E eu ter ido por aí.


(2015)

Horário Marcado


É aqui, em horário marcado,
por um fio,
que a gente melhor se desconhece.
Com todos os braços possíveis
todos os intervalos
pouco justos entre querer e mais.

(2015)

Limites

Temos ousado prever o fim do mundo.
Nunca o fim do amor.

Não sabemos


Não sabemos,
Sou suspeito,
Nem podemos
Imitar o desejo.

Duas sombras
Defendendo-se como podem.
Uma conspiração?

Crime é viver
Atrás de uma lente.
Nada é invisível
Quando mente.

Investiguemos perto,
Finalmente.
Com vermelho,
E espelho
E azul.

(2016)

Sou megalômano


Sou megalômano.

Queria propor-te uma brincadeira
com as estrelas,
um susto
De sem dono,
teres já morrido 
quando te vejo,
Nunca mais
se sortear o fim. 

Parceria de rua.
Passarmos na casa de partida
a pensar no lucro
que dá um beijo
se forem seis.


Não há nada como o antigamente

Não há nada como o antigamente
para quem tem medo
ou sono
ou está só.
Máquinas fariam 
para quem não precisa.
Um nó no mesmo inverno
na mesma flor
bastaria para
estancar a dor.

Seja como for,
eu te digo que acordo
no futuro. E de cá
te mando um beijo
confiante
de que te vejo amanhã.

Se por acaso não vieres,
conta a outras mulheres.


(2015)

Casebre de Montanha

O que podem dois,
Num casebre de montanha,
Fazer com o destino?
Inventar papéis,
Trocar-se.
Rir e conhecer.
Aprender a ler espuma
na nuca, as mãos abertas,
um bis.

ver três filmes antigos
perdoar, também,
e lembrar dos outros.

Saber concretamente
que não há morte.
Exemplificar o que é uma
lua se esconder no mar.
Servir-se de tudo.

(2015)

Do anoitecer


Poesia é tudo ou nada,
Não dá para escolher.
Poesia não é da amada,
Mas do anoitecer.

(2015)

Que desencontro, amor

Que desencontro, amor
Eu inteiro, tu melhor.
eu bora lá e tu pera aí.

Acho que sempre tive medo de ti.
Medo do teu não,
Medo do teu sim.
Medo, mais ainda, do teu
antiquíssimo silêncio.

Sabor ácido na boca
Recomeço do fim.


(2015)

A mim também a poesia mudou a vida

A mim também a poesia mudou a vida.
Não sabia como chegar, nem sei, nem ia.
A cabeça de fósforo dançante no peito,
Não cansava, nem contava, nem ardia.

Enterrava as futuras rugas no sofá
Deixava a escuridão no lugar dela,
E sorria na tristeza azul de imaginar.

Lisboa

Lisboa não sei se te conheço
Ou me espanto.
Sei que também madrugas
E tens um canto só
Onde terminas.

Sei que cantas porque não consegues, e ninguém acredita
Amante, moça, santa, mãe
Mal dita.

Um dia perdi-me.
eras Branca, branca, branca,
Assim azul de imaginar.
Outro dia venho escondido, juro,
E te apanho no altar.


(2015)

Descer à Palavra

Deus tem que descer à palavra.
E desce.
Para rir, perguntar quem viu,
E desmentir histórias antigas.
Para passar a mão no cabelo de uma criança que terminou a dança.
Para contar as estrelas
Que só adivinhamos.

(2015)

Um verso estrangeiro

Escolhi para ti um verso estrangeiro
e a minha profissão
aqui 
é pular etapas. 

bastariam duas pedras,
para quebrar os dentes,
o mundo,
as ilusões,
tudo de uma vez.
E nada acontece
enquanto me esperas
muito lá em cima,
depois do suor
dos óculos,
da fome, dos rios,
das coisas.

Precisamos um do outro
é o que quero
acreditar que é,
mas, pudera,
deixaria o teu sim
para eles ou pra depois.
te olharia somente
às risadas e aos
prantos, de uma vez.

Enfim, sem mim,
de uma só vez,
Te amaria
a levitar ja sobre as janelas,
,vizinhas brancas.
A desaparecer
Por dentro dos suspiros
, das histórias,
A espreitar entre linhas
,nos dentes
pregado na cruz, desaparecido.

TU és tu eu sou eu
e não entendo nada disso
enquanto giro na mesma
esfera de Berlim.

Quero sumir-te e assumir-te.
voltar a ser vida primordial
como muito
abaixo da terra
faziam os primeiros
peixes azuis enamorados


(2015)

No jardim

No jardim que apontaste procuravam quatro folhas de trevo,
Eram dois e procuravam.
Havia obras de fachada falhada e recuperação de pernas modernas.
Cinquenta ou mais morenos e loiros diziam que bom que é estar aqui,
E só dois, esses solamente dois, procuravam as quatro folhas de um trevo só.
Não falavam da Grécia com tesão crítica
Não pintavam grafites feios
Não planejavam ter mais dois filhos se este vier direitinho
Nem sequer usaram na tarde inteira a palavra amor.
Procurarvam trevos no chão inclinada ela sentado ele, mas só de quatro folhas.
Não ofereciam ajuda a quem não precisa de ajuda
Nem aceitavam mais um café se faz favor, e uma nata.
Não. Procuravam. Posições incómodas, calor amigo moderado,
E Procuravam.
Não olhavam pro relógio que vai fechar.
Não comentavam que hão-de pensar os outros e Cátia
Não fotografavam o ato e só falavam dele, nele, para instruí-lo: mais pra cá, lá,li.
Para a condução das quatro mãos às quatro folhas.
Havia aves de beira rio naquele dia
E uma América contente com tanta alegria no velho velho mundo.
Com tantas cores sacadas da Amazônia para as muralhas.
Havia trepidações constantes porque não há
Beleza insulada da vida, e aceita-se,
Se por dentro a casa estiver limpa e mais ou menos arrumada.
Não procuravam conselhos nem deitavam na imitação, os dois,
De divã. Nem divagavam. Foco de pele e saliva e carne
Na recomposição da ideia de Deus. No cálice que ainda falta mas pode ser beijado
Nas ribeiras mais que nas catedrais e palácios.
Cultivar sem dar por isso a esperança do mundo.
Vir do fundo não é igual a nada. E a tudo voltará.


(2015)

De corredor

Deus,
O que foi que eu fiz para ter pérolas na boca 
E calor nos pés
Quando ela passa?
Uma comichão na gengiva,
Na janela muita luz aberta,
Um olhar de gavião perdido,
E uma resposta descompassada
De corredor?

O que é isso de amor?
E que é que é só
Maça e serpente? - fala Senhor.
Tudo é dor, sei, mas fala Senhor.

Que foi que eu fiz
Para ter visto só no
Espelho o pelo a mais
E o apelo a menos,
O nariz a crescer,
Nem o mentiroso acredita.
Deus, a terra é tua! Grita

Que foi que eu fiz
Pra ter sede de gravata
E rua
Quando ela surge, sugere amanhã
E são quatro? E nada pára,
E o texto por imprimir
E a roleta aí, Deus.

Tantos anos de treino
Por tanto e nada?
E se for coisa
Desde séculos marcada?
E se for coisa
Como quinhentas, menor?
Melhor?


(2015)

Sou teu


Sou teu.
Escolhe o tema e começo

a dizer coisas
de anteontem
que nem se comportem.
tudo a fingir e rápido
assim,
de coração.

Sou teu.
Escolhe o tema e tropeço,

me desvio e recomeço
danço hoje o carnaval
que é normal, russo torto,
assim
de exaltação.

Sou teu.
Escolhe o tema e cantarolo:

baixo, baixíssimo,
a solo, a solidão.
sou teu, afinadíssimo
assim
De Verão.

Sou teu.
Escolhe o tema e misturo

Absinto, com carne
crua, tudo puro,
mistério
até à hora de deitar a caçarola,
E caçar, Sou teu
assim
De Leão.

(2015)

Nas Esferas

Brinco nas esferas
Translúcidas 
Com os pés.

Tudo são recuperações
Depois do espanto.

Ondas onde não
Podem descançar-se
Navios.
Abraços mais apertados
Que raizes nos arcos
Países de cor roxa
Países aos quadradinhos,
Aquecidos.

Uma multidão não
É uma multidão se sorri para a gente.

Todo este mercado
Foi construído
Para o teu perdão.

Comentários

Não há porque não,
Há as desventuras:
Um sangue que atrapalha
A rosa e a calma -
Traduções. 

À pressa
Do passado,
Das comparações,
Das lendas,
não descanso
De tanto em tanto.
Mas mesmo com olhos
Dormentes te encontro
No minuto
De nos salvar.

O mundo que
Se agarra ao vidro
E aguenta
É cá de dentro.

Vai ficar tudo bem, meu bem.
Mesmo quando a luz
Se apague.


(2015)

Palavra pela palavra

Amarrei numa pedra um recado para ti:
- Recusaria a lua se significasse um beijo menos.

Conduzi madruga ponta a ponta, sentei madeira acidentada e disse à parede vazia que te amo.
Chorei por duas horas,
Mas foram dez minutos.
Senti que vinhas, e não vinhas, e talvez não importe.
Sou o teu maior fã, entendes?


(2015)