segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Humanidade

Ah! Humanidade! Onde aprendeste a insultar o teu riso?
A tua solução para a morte,
Que é a diferença de cara em cara, e o espanto?

Como disseste a quem queria ouvir: não vales
Se senhores em todos os continentes
De barba, gordinhos, guerreiros, abridores de mar,
Vieram só para mostrar que é feio assim?

Por mim, se não por mais ninguém, humanidade
Sonha com o postal da torre no campo,
Aceita se o silêncio vier pela cidade.

Apelo à Moda da Nona

Canta de alegria, meu bem, meu povo
Abre os braços e sua de prazer
em fé, no chão comum, de limite não haver
Para o que importa pulsa e avança.
Dança a dança que nem é dança
O rodopio dos surdos, a dispensa do medo.
Bem cedo o mundo voltará a ser
Assim como foi desenhado na sesta.
Ri, descansa, sorri. Brinca com o
Arrepio frio na tarde quente, semeia
Como quem deixou o frasco de sal na colmeia
Irmã, Irmão, larga o martelo, a chave,
Agarra-te à harpa, sobe a parede
E ilumina de comichão e espanto
A natureza que nunca se escondeu
Mas estava desaparecida em mim.
Disfarça-te de cometa ou príncipe
A começar na nossa infância mais tola
À toa, esquina traquina e procura um trevo
De cinco folhas no meio do roseiral.
Sacode o cabelo da testa, é Festa!
(Ninguém manda quando pode amar)
Faz caretas no espelho que podes
E és bonito, bonita, um sentido
De finura que atravessa as cortes
E não para antes da mão na mão.
Olha para esta sala, que coisa!
Percebeste onde havia poetas?
Em todo o lugar. Repara: três senhores
Uma boneca, um ursinho, o caderno
Aberto para não esquecer a esperança,
Toda a imaginação também, que
Ser severo ou chato não pode riscar.
Sai da cadeira, sê a primeira, abraça
O cabelo branco por trás, e traz
Uma rouquidão merecida, que é parecida
Com o perdão do que não se faz.
Saltita com a flauta, arrebita,
Temos muita barba para anunciar
O que percebemos pela primeira vez
Rufa o tambor e marca o que for
Já ninguém delimita o que é mesmo
O que é fita, somos o globo inteiro cantor.

Tenho medo

Tenho medo
E tenho raiva
E apetece vomitar
Por nós.

Tenho sede
E sono
E não se acorda
Porque ainda se cala.

Queria ter cultivado
Uma rosa
Com todo o amor
Para colocar no
vosso chão
ao pé do
vosso traço,
de pé.

Tenho vontade
de apagar
a palavra liberdade
Para virar
Assim o nosso
Segredo
mais criança,
entre a pele e o pelo,
suor
De ir e de voltar
)de passar na
banca, igreja, ,
Escadaria, vão.
Praça, túmulo, festa,
Café, pão(
saliva da vossa,
na minha língua
nos nossos beijos,
nos dentes, todos,
a ranger.

O que nos deram,
irmãos,
Não soubemos
Não sabemos
Devolver.

Manuel, Avô

Comias a sopa a escaldar
- Garganta de cortiça - 
Ajeitavas a lareira como
quem abraça
Abrias a casa da eira 
para os cheiros,
fantasmas, fascinações,
E explicavas com paciência,
Coisas da terra
Que nunca entendi, mas hei-de entender.

Estilo bravo, sempre te tive
doce.
De lá fora para a cozinha,
da cozinha, para a poltrona
da poltrona para o reencontro.

A minha cor favorita é o azul.
Um dia estavas já quase de
partida para longe olhei
e vi que os teus olhos
eram os mais azuis
do mundo.

Este pode ser o último poema

Este pode ser o último poema
Nas minhas mãos,
Ou o primeiro:
- Decide a tua boca.

Este pode ser o claríssimo poema
Dizer não sei
Tenho medo, onde andavas
Chove muito, preciso.

Este pode ser o poema adiado
A quem faz sorrir a paz
A quem ouve inteiro o mundo
A quem se cansa, pausa

Este pode ser o poema da elegância
Não te preocupes
A vida é mesmo assim
Haverá sempre Paris. Ris?

Este pode ser o poema da ordem
A semana está a meio
Vida comum no inicio
Muita pergunta cala

Este pode ser o poema do hábito
Amo-te muito, quero estar
Também eu, és linda,
Vou fazer-te uma surpresa

Este pode ser o poema do chão
Que bom recuperar o ritmo
Da respiração, esticar o braço
E beber o vinho

Este pode ser o poema da curva
Calma, segura-te, vai dar
Tudo certo. A gente manda
Na estrada. Eles é que são loucos

Este pode ser o poema vapor
A gente sobe aos céus
Quando o calor é tudo
E já ninguém nos pode agarrar.

Este coração meu

Este coração, meu, 
Alarga, se molha, exala, 
Arrebita, enxerga, nega
Curva à direita,
Inventa seita.
Se senta no passado, dado.
Se centra de amanhã.
Para um dia ser,
Além de vingança não
Coração de perdão.

Preguiçoso por querer
da santidade
Só o que esteja à mão
tenha sabor de paz
E alimente, pela porta de trás,
a saudade.

Impossível

Impossível é olhar para ti
Sem sentir estranheza, desconfiança, amor.
Ouvir a história do tempo,
Das coxas, das liras, deixar
O caminho para os nossos filhos
E não desesperar.

Impossível é não ser menino,
Outra vez. Não ter as pernas
A tremer, a boca a cantar seca
Um pregão dito hino, um pedido:
Olhem para mim e riam ou chorem,
Fiquem mais um pouco devagar

Impossível detestar a palavra mão.
Descer fundo na terra cozida
Na renda encantada, nos corpos
Azuis a recuperar-nos depois
Dos passos e dos abraços e dos espaços
A coletânea de ideias, beijos gentis.

Impossível é não querer esse despido
Na porta da outra cidade, na
Idade desesperada dos amigos que tinham
E têm deus ao pé da linha. Na escada.
Idade de ser carteiro e ser poeta
E ser onda preguiçosa porque gosta
Quando a costa finge que se afasta e é melhor.

Impossível é determinar hoje
Onde iremos depois do baile k.
Antes que a injustiça fique suspensa
E vendida, também comprada, também
Solta e dentro de uma garrafa cheia
De gás e da solidão que por ser
Tão banal e certeira não nos interessa.

Quem dera deu

Limpo o quarto, conto o lixo
Para poder morder o mundo.
Se me falarem de pessoas
sorrio, e sei porquê.
Se me apontarem rios, espanto.
Nunca voltamos a ser
Do tamanho de ontem à noite.

Quem dera deu

Gostar de ti

Não pedi licença
Para te gostar original
de ideais para casal.
Perdão.

Quero tocar o sino.
Isso é gostar de ti.
Quero aprender o fogo
Isso é gostar de ti
Quero ver o teu país
Isso é gostar de ti
Quero pensar alto, bem alto
E isso é gostar de ti.

Quero saber de mim
Isso é gostar de ti
Quero voltar à roda
Isso é gostar de ti
Quero ajardinar a poesia
Isso é gostar de ti
Quero a primeira mochila
E isso é gostar de ti.

Quero corrigir a receita
Isso é gostar de ti
Quero a cama bem feita
Isso é gostar de ti
Quero ficar vermelho
Isso é gostar de ti
Quero mato e mar
E Isso é gostar de ti

Quero voar perto
Isso é gostar de ti
Quero amarrar a cortina
Isso é gostar de ti
Quero perguntar a batina
Isso é gostar de ti
Quero fingir francês
E isso é gostar de ti

Quero ser agradável até
Isso é gostar de ti
Quero ser sincero, então
Isso é gostar de ti
Quero compreender o azul
Isso é gostar de ti
Quero caminhar como dantes
E isso é gostar de ti

Quero alforrear queixinhas
Isso é gostar de ti
Quero dourar batatinhas
Isso é gostar de ti
Quero inventar sentidos
Isso é gostar de ti
Quero lamber o mundo
E isso é gostar de ti.

Quero apostar o último recado
Isso é gostar de ti
Quero perdoar o perdoado
Isso é gostar de ti
Quero fingir-me fechado
Isso é gostar de ti
Quero adormecer de lado
E isso é gostar de ti.

João

Como está o mar que te arrepia, João
Como está o medo?
Disseram que vinhas João
E chegaste mais cedo.

Senta que ela chega, João
Chega que ela cala.
Treme que justifica João
A praia já fala.

Atira pro alto, João
Pode ser, não caia
Vende as certezas João
Ela vem de saia

Debulha o presente, João
Monta rede e plano
Mergulha ligeito João,
Tem brancura e pano

Afina os olhos, João,
Lembra corpo e cara
Lembra as olheiras João
Porque ela não para

Tem banquinho e sombra, João
Vive assobiando
Se não brigas mais oh, João
Me perdoa quando.

Só quando estou no melhor de mim

Só quando estou no melhor de mim mesmo
te mereço.
Sem falsas modéstias:
quando no melhor, te mereço.
E quase me esqueço
de que andei como era, como dá. 

No melhor, quando faço a cama
Quando preparo o teu pijama.
Quando adormeço a namorar.
No melhor, se aceito um conselho
Se te levo junto para o espelho
Quando quero a vida devagar.
No melhor se procuro a foto certa
Se te deixo a porta aberta
Se não te tranco de durar.
No melhor, arriscando ser criança
Pisoteando a tua dança
Aprendendo a descansar.
No melhor, se te chego na janela
Se nem preciso à luz da vela
Se conheço outro lugar.
No melhor, quando sou a fé inteira
Quando digo a nova asneira
Quando só sirvo para amar.
No melhor se caio para a esquerda
Se sou óculos sem perda
Quando fico a morenar.
Se lacaneio os meu instinto
Sé só por ternura te minto
Quando começo a soluçar.
No melhor, se é certeira a camisa
Se é presidencial a pizza
Quando te vejo junto ao mar.

O vento não

"Palavras leva-as o vento"
O vento?
Não, não, não.
Vamos lá: palavras.
- Crio o mundo sete dias
e tudo. Faça-se luz!
- Parabéns, meu amor
- Até que a vida
- Papai, papá, chicha
- Não desligues, por favor
- My name is
- E foram felizes para sempre.
Palavras são o único jeito
De beber água,
De filtrar as estrelas,
De calar o pão.
"Palavras leva-as o vento"
Até o vento sabe que não.

Não tenho palavras
Mas vento tenho tanto
Que assim, distraído,
Canto.

Pulsação do Jazz

Esse sábado tem tudo
E tem noite também:
O cheiro das tuas mãos
Na minha barba adiada,
O caroço da cereja
Que te conto a revolver
minha terra.

Um cabelo enluarado,
A preocupação da hora
tem esse sábado agora.
E tem o estilo apertado
De sentir a pulsação
Do brinde, de seguir
A pulsação do jazz.

Tem até Copacabana
Salva,beijada por trás,
Assoviada, convidada
Na ideia de outro lugar.
Tem escritores discretos
Para cinema, as línguas,
Tem café de acordar
O que não precisa de ser acordado.

Sargaço Lar

O mar está mais fundo que nunca, Nana
Mais cá.
Os meninos do mundo
se juntam à beira da Lagoa
Porque as lendas são outras
Mas o medo é o mesmo
(amargo e doce
debaixo da língua).

Aconteceu haver
gente a menos
para presenciar
Como o céu se encolheu
E a luz se abasteceu
Quando aqui apareceu esse mar
de teu pai.

Deus nos abençoe!
Tem que haver Deus!
O caminhante das águas?
O vinho das águas?
Que tesão de acreditar.
Porque te temos
nua, respiração, mulher.
Porque há um bem,
e há o mar.

(Para os Caymmi)

Serei a Concha

Eu serei a concha
Menos preparada
Mas no caminho
Quando fores ver o mar.
Eu serei o exemplo
Da tristeza antiga
Pedindo Carnaval,
Sempre adiando,
Quando te cansares de ti.

Inspiração

Procurar inspiração
é cair-te no colo.
Abraçar-te aos quadradinhos
E perder a duração
Das coisas.

Ouro Preto, eu Vou

Vou-me embora para 
Ouro Preto, te esperar
Na sacristia. 
Deixar-te voltar do
tango. 
Fumar, sem saber,
o teu cigarro,
inventar causo.

Vou-me embora,
para Ouro Preto, e vou bem.
Primeiro divã,
segundo espelho,
contar anjinhos,
Farofa mais amarela
E televisão espacial.

Vou-me embora
para Ouro Preto, já cá estou.
A terraçar
sem esticar a rede
A fazer teia
Sem aprisionar.
Aqui teria sido
Bom lugar.

Perfeição

Perfeição, não existas não, 
sim?
Temos olhos no peito, 
E a morte adiada.
Precisamos da estrada
Mais que do portão

Sensível à ideia

Estou sensível à ideia
de me prometeres um chão.
Não ter assunto,
palete romântica,
nem semântica.
Farinha que dá osso
Beijo que dá pão.

(2014)

Escrever-te por dentro

Vou escrever-te
Por dentro.

Até acabar a tinta,
A luz, a voz,
Vou escrever-te.
Escrever-te até acabar
O jeito, a cor das
Janelas amadeiradas e
Os números cardinais.

Vou escrever-te
Até acabar a mata
O relógio e a ciência
Até que acabem
Os degraus dos loucos
E as casernas dos sábios.
Vou escrever-te
Até terminar o susto,
Isso, o espanto.
Até desmaiar, até
Que o açúcar acabe.
Vou escrever-te até
Acabar a dose certa,
A ronda dos palhaços
As gaiolas que ignoram
os pássaros
Até acabarem espaços.

Vou escrever-te até acabar
A lira, o lírio, o cansaço,
Até a certeza acabar.
Vou escrever-te
Até que denunciem a sorte,
Até que dispensem o norte,
Escrever-te
Até cancelares a morte.

(2014)

Sempre a tempo

És sempre a tempo
Quando tempo não há.
E a garganta seca,
A barriga coça d'ontem.
Quando são demais os sonhos
Pra escolher.

És sempre muita
Para os dedos, ai deus,
Deslumbrados, sapinhos.
Inúteis aos saltos
Entre o sabor da concha
E o tropeço do espelho.

És sempre além
Pelo, luz de costas, sinal.
Toda fim e compreensão.
Quando ainda me preparo
Alerto todos: Vem inverno!
E te deito em primavera.

Esta falta

Esta falta aqui não é igual
Porque terna e sem posse.
Bem de abraço.
Não se preocupa, nem
Cansa as cartas, os códigos, os vícios.
Deixa sorrir e até faz sorrir. 
Descasa das ideias
Porque leve e gentil - vou só encostar a porta. Já está.
Se tiver pão, manteiga e sol,
Esta falta almoça e não sobra: Dança tango com a cidade.
É prima daquele frio de minas, sabes?
Enfrenta escuro e salto, cavalos - tem tempo.
Esta falta se não estivesse aí faria falta,
E pousa a calça xadrez do avesso
Como quem deixa escapar
Que os dias são ao contrário.