quarta-feira, 15 de julho de 2015

Como uma borbulha

A poesia nasce da sede,
como uma borbulha. 
Passamos sono e aquece,
Passamos desejo e aparece,
Passamos e nunca mais passamos.

A poesia não dá para a fome.
tem instintos de lotaria,
e sabe bem,
de cabeça nas mãos
onde iria. 

A poesia é uma pedrada, física,
no coração lambuzado. 
Um depois de tanto, 
um recomeço 
que nunca  concorda.

Plutarco cantou, meio torto
para mim:
está na hora. 
Está na hora, concordou
São João.  

E agora, como durmo?

Se eu soubesse

O acaso é uma estrela cortada no meio
uma exaltação do tom além da corda
uma caminho cego que quebra a mão
como quebra o espaço,
uma explicação de dois reis e um príncepe
que apaga a fogueira
no primeiro sopro. 

Quando tudo desabar,
porque a fome é muita, 
restará o poeta e a memória. 

Como pode ser isto de que dizem 
do acaso em confusão?
A casa é vermelha, tem muita
baía da partida capitã. 
Tem tiro e marcha e Florença
e solenidades de lápis de cor. 
Comportemo-nos só mais um instante, 
porque nem o tempo existe. 

Uma rosa descolorida, seu eu soubesse.

Próximo desmaio

Morrermos no próximo desmaio:
convite sério, que te faço;
mais de corpo que de dente,
mais de língua que de então,
mais cego que espírita
Mais bem vindo que intenção. 

No próximo desmaio, depois da ponte
onde tudo passou para não desabar
onde a gente marcou para pensar
o que fazer da gente,
Deixarmos a coisa ir de repente -
sol, canela, casa, semente, âncora, fardo,
centelha, conselho alado.

Morrermos no próximo desmaio
é o minimo que devemos ajoelhar
do tanto necessário,
conta aí no teu rosário. 

E se eu ficar?

Festa do sim

Venho ver a festa do sim
Emigrado e companheiro,
Atento desventureiro,
Erguido de bem querer.

Venho ver a festa do sim,
Mão no bolso, sonho claro,
Sorridente quem nem paro,
Contriando o anoitecer.

Venho ver a festa do sim
Trazendo a vida inteira,
Tentando a mão primeira,
Admitindo não perceber.

Venho ver a festa do sim
E falta céu no céu, eu acho,
Tanto adeus em baixo,
É proibido reconhecer.

O meu coração está doente

O meu coração está doente.
E, mesmo assim, a reiventar o tempo,
A fumar as línguas,
A voar de cabeça para baixo,
A menosprezar o sol.
A desdizer o pecado, o recado,
A descolorir a dor.
A reagrupar o som e a fúrias,
A soltar granadas de luz neste caminho,
A suspender a brevidade de tudo.

A subir nas cadeiras,
(Nenhuma riqueza nesta poesia)
A soprar sombras experimentais,
A serpentear pelo fundo do mundo
A libertar todos os anzóis.

A pedir impunidade só desta vez

Carrasco

Todas as madrugadas precisam de um carrasco.
O desejo de volta à lamparina,
Um cão que não gosta de outro cão,
Deitar à roda com o mundo,
Uma porta com força, ou um portão. Garrafa no caminho do alívio,
Janela mal fechada por um triz
Desculpas pelo outro pela demora,
Sobras de música longe demais. 
Pressa demais, carne de menos, bis
Um convívio de lua nova e jardim
Roupas misturadas, aquele frio
E eu ali sem saber de mim

Folhas

Não sei se me escuto ou se me perco
Nestas folhas que chuto, bruto,
Lambo, bebo, cuspo, desalinho a cantar.
Folhas que miro, giro, confiro, maldigo - perigo de entrar.
Folhas que caço, passo, esqueço, com estardalhaço de bar.

Folhas que empurro da noite pro dia do dia pra sorte,
Folhas que enterro pra confundir a morte.
Folhas que congelo, elo entre a gruta e o eco irmão
Folhas que prego, escorrego, nego, carrego na carne, em comoção.
Folhas que capitulo, grito: é nulo, escanteio, fecho os olhos, puxo o freio.
Folhas que demoro e decoro se amei,
Folhas que leio ressuscitado mas não creio.

Por não haver idade pronta

Por não haver idade pronta
Sopramos o vidro sobre a mesa
Retocamos o muro de dentro
Ajeitamos o cabelo e o resto

Por não haver idade pronta
Adiamos a visita às crianças
Penduramos as gravatas boas
Inventamos uma cara de festa

Por não haver idade pronta
Tocamos uma vez só a campainha
Comentamos o cubo arrumado
Desprendemos a dor da voz.

Vontade

Vontade de roubar a poesia da tua boca,
correr para o quarto, interromper as estrelas, largar a mão.

Vontade de copiar o teu improviso,
o teu espanto, as cartas e o amor. 

Vontade de morder-te, ter certeza
de que podes falar quando não falas
e podes ir quando ficas.

Vontade de transcrever o silêncio.
o primeiro silêncio fora do rosto.

Vontade de colar o instinto na pele.
Tremer eu quero, nessa hora, agora. 

Vontade de rezar de riso aberto,
descrente da estética, da moral
dos ritos tontos, dos crimes e do tempo.

Vontade de enviar às gerações
as últimas migalhas deste pão,
a escultura distinta de misturar
o que é distinto e proibido.

Vontade de cravar a doçura na pedra
Puxar-te para o colo.
Decidir açoitar o diabo por nos ameaçar, mesmo quando tudo quanto é branco também é curvo e vão.

O deserto

Amo o deserto, porque é bom para ler histórias, inventar histórias, deixar a poesia encostar a cabeça, sentar ao lado.

Sem símbolos ficamos prontos para a festa, nus.
Aguardamos como quem passa. Fechamos os olhos como quem quer agradecer. Adormecemos como quem nunca voltou das estrelas

Muito além do tempo

Muito além do tempo,
Onde nenhuma palavra sobra,
Onde de amor nada se cobra,
Onde a gente fica por querer,
Há uma flor, uma mulher, um homem.
E tudo é encantamento, passa, porque não se explica.

Querer e mais

É aqui, em horário marcado,
por um fio,
que a gente melhor se desconhece.
Com todos os braços possíveis
todos os intervalos
pouco justos entre querer e mais.

Não é tempo de chegada

Maior contradição, que chatice:
Tudo o que tenho a dizer,
inútil, baralhado, é para ti e 
só a ti não serve, está proibido.

De mãos cortadas desço o pomar
e olho para árvores que chovem
e ai dos cantos que rondam e nem passam 
e ai das serpentes adequadas, frias
e ai dum lago fundo em lodo e esperança infantil
e nenhum pecado bem colocado
para reiniciar o mundo nesse pomar.

Meu bem, minha condição de deserto, 
relembra, pelo menos.
e na lembrança terei cor 
e terei cheiro e não terei perdão. 
Pelo menos comprime o vento 
dá a largada
cabeceia o ombro
puxa outro para dançar
continua a hora da janela
não é tempo de chegada
não precisas acabar.

Só nós no mundo

Só nós no mundo
Rindo um riso que não dá para emprestar a quem passa
que não dá para agradecer às abelhas
Que é cola russa.

Nada nas revistas de consultório,
nas festas da faculdade,
nem nos sonhos da Clarice
nos preparou para isto, 
para isto em chão, em carne em sol, em flor.

Nada nas escadas da maconha
no verbo dos argentinos,
na lenda de fantasma e amor
nos preparou para isto aqui, vês?, 
Para isto em calma e não, em jazz,enfim. 

Nada nas previsões dos profetas
Na provocação curta das ninfetas
nas novas telas simples, pretas e nuas
nos preparou para isto ao ataque 
Para isto formigueiro, coxa, enxame.

Nada no diário da vergonha
no jantar de todas as juras
na praia que avançou além do mar
nos preparou para isto assim, crês?
Para isto exato, curvo claro sem paz, detrás

Só dois no mundo
Ao contrário de perdidos, mordendo,
O que ainda não principiou mas nos invade
O que tinha que ser e era tudo o 
que a gente tinha.

Filho marinheiro

João nasceu lá onde ninguém fica com intenção de ficar - Minas sem ouro. Os bois mansos,  dirigiu desde os oito quando, aos doze, se cansou. Veio morar na cidade grande, uma mala cheia de honestidade, na maior cidade. Teve fome, teve frio, mas não deixou o Sertão voltar.

Muito tempo foi tempo de feira na vida de João. Muito tempo foi tempo de estrada e no meio desse tempo tanto, Maria: De quatro vícios o primeiro. Todo o dia, antes de chegar a Maria, João desviava o ponteiro para a cachaça sem fundo, e na casca da cachaça jogava de cartas a dinheiro, e por dentro da cachaça voavam quatro maços de um tabaco que sabia mal como era bom.

O filho de João e Maria apareceu no mundo e tão rápido como oito meses o mundo mudou. Uma noite estava já não se sabe bem como nem onde e João decidiu: para criar este filho o que é ruim nos amanhãs tem que ser chutado hoje já. No fim do caminho das migalhas, na casa doce disse a Maria: a partir de hoje não fumo não jogo e não bebo, que o filho é meu e é nosso. Maria riu. Mas como não rir  se João queria largar João; desencarnar em viva vida, como dá?

Maria São Tomé foi ao o bar e pintou sobra da garrafa privativa com esmalte, vigiou as roupas perguntou aos amigos da mesa, e nada. Tudo de uma vez João fez.

Já lá vão vinte anos e o menino saiu do colo para o estudo, engenheiro de máquinas e fábricas, desabrochou e se soprou pro mar. Hoje é oficial de Marinha e Maria, que tanto tinha com mais não pode ficar. João não deu sorte. João matou o azar.

Nada na mesa

Podia até ser grande o amor
não tinha nada a opor
Mas nada havia na mesa.
A sesta demorava mais que o beijo
A linha ponteada
sem agulha, sem roca, sem solução:

- Roda cantor, roda peão
- Roda em flor, roda pavão.

O primor ficou na moda de estar.
Ficou dum certo jeito, no ar:

- Roda cantor, roda no chão
- Roda pudor, roda na mão

O sentido sentiu fresquinho e voou
O sabão ouviu santinho e gripou:

- Roda cantor, roda canção
- Roda tenor, roda o refrão

Para-lamas não detém o amor.
Para-lamas não contém o amor:

- Roda cantor, roda em balão
- Roda sem dor, já é São João.

Fui duas vezes

Fui duas vezes
Fiquei. 
Não fugia do amor
Mas do tempo.
Um amigo irmão
embrulhado em bandeira disse
vem, está tudo bem.
Isso foi
Quando o destino
me lambeu:
- Sou eu.

Ainda digi

Ainda não existe a liberdade,
Digo -
E o amargo na boca
É boca grávida.
Cama confundida.
O barulho da cidade.

Reflito e rio
Fecho os olhos e não morro.

A decência é um péssimo hábito,
Uma roupa que nunca cola ao corpo

Cultivamos estrelas

Cultivamos estrelas desde criança.
Substituímos o destino 
por coisas simples:
Beleza, chapéus, cavernas,
por exemplo. 
Fomos com os olhos misturar
passarinho e fim do céu
claridade e bom dia
tempestade e mão na mão. 
Embarcamos em maré baixa
sem senão.
Nunca saímos 
do primeiro encontro.

Amor, amor, amor

Quero amor amor amor
Amor furta dor, amor na jangada
Quero amor amor amor
Amor de suor amora trincada
Quero amor amor amor
Amor sem pudor amola a enxada
Quero amor amor amor
Amor camponês, Amália gritada
Quero amor amor amor
Amor breve odor, amor beira estrada
Quero amor amor amos
Amor descompor amor madrugada
Quero amor amor amor
Amor sem valor, amor desgarrada
Quero amor amor amor
Amor de supor, amor mascarada
Quero amor amor amor
Amor não sútil, amor na chegada
Quero amor, vem, quero amor
Sei que há novo amor disparada

Frente tem um muro

Frente ao busto da encontração tem um muro
E além desse muro a casa,
E dentro da casa o nome,
E no fim do nome a brasa.
Na casca da brasa tem ciúme
Na carne do ciúme a madrugada
Na madrugada herdado perfume
E depois do perfume não há nada.

Como cigarro, como a maré

É tão bom  e tão estranho amar-te,
Como cigarro, como a maré.

Vontade de recomeçar o mundo,
janela, pétala a pétala.
Humedecer as cores para
que se misturem, reabilitar
os ecos para que nos dispensem
da fala.

Vontade de cobrir os rios
de seda, cair nos rios.
Aparecer aos outros como
prenúncio, como fantasmas doces
Convidar os outros
para espiar as ideias
sem tempo, o cuspe,
a história brava, de
bravo lume.

Vontade de inventar luz
para te abrir e consumir
a boca. Canelas finas,
Dentes prontos, coco tombado e
pedra e cais e salvação e nada mais.

Vontade disto aqui para sempre
para agora, porque sim.
- Pára, Pára, Pára mulher.

Vontade de colapsar, ver a
morte ali embaixo,
ficar agarrado aos teus cabelos.

Cantos que não lhe pertencem

Deixamos o tempo
Tomar conta de cantos
Que não lhe pertencem.
Deixamos envelhecer a mesa,
Deixamos descansar a certeza,
Nos deixamos chegar.

Partimos o pão em metades
Iguais que não há
E bebemos café sem
Intenção de acordar o mundo.

Para quê tanta superfície,
Se viemos do fundo?

Alquimia

Alquimia
De transformar pele em pele
Riso em riso
Chão em chão.
Alquimia de morder norma,
Alquimia febril e corrimão.

Alquimia 
de transformar trapo em trapo
Prato em prato 
Mais em mais.
Alquimia de céu cigano,
Alquimia discreta nos sinais.

Alquimia
De transformar tempo em tempo
Nuca em nuca
Vela em vela
Alquimia de fuga em corrente,
Alquimia ignorante e bela.

Alquimia
De transformar ventre em ventre
Praia em praia
Giz em giz.
Alquimia de Rio antigo,
Alquimia que o sono quis.

Alquimia
De transformar silêncio em silêncio
Fome em fome
Estrada em estrada.
Alquimia por dentro da sorte,
Alquimia da morte adiada.

Parece tão urgente

Parece tão urgente ser feliz
Que se cala a madrugada e
Se conjuga nova piada
Para acalmar o amanhecer
Se a gente crescer
E perder o rumo
Não fico mais aí
Não me escondo mais por ti,
Todo o homem quer ser sim, vem
E tem medo.
Onde ouvimos que é tudo
Um grande retrato?

Poesia sufuciente

Não havia poesia suficiente para a gente, 
Nem madrugada, nem luz, nem lei.
Tropeçavamos nos planos de fim e riamos de mim.
Faziamos da rede a relva do rosto o risco, das costas a primeira exploração. Viviamos subestimamdo o perdão.
Adiavamos as corridas, a torbulência das rodas, pensavamos sem eixo, sem explicação.
Não havia ter que não fosse estar. Nenhum dos dois sabia chorar. Não havia. E quando a janela se abria, a gente engolia o mundo.
No fundo, a gente substituia o passado que some, o acordo que dorme, pelo nosso pacto concreto de fome e ilusão. E aí então a gente se cansava no ar. Porque a questão não é o nosso amor. A questão é amar.

Para o desejo chegar

Fala com dificuldade,
Para o desejo chegar primeiro,
A destilar o toque pioneiro,
A desmiolar a escala das coisas -
Porque a história já não conta aqui
E os homens desapareceram da rua.
Casa virou janela,
Estranheza virou cor
Há vibrato, mão indo onde for...
Ah, senhor! Tenha piedade de nós.
Fala com dificuldade,
Dança com a tontura e balança,
Do sim pro mais.
Não são sinais. É a pele a decidir.
E se a gente desistir, vamos supor.
Aí, falarás de amor.