sábado, 29 de junho de 2013

Opus

Parem a orquestra, parem tudo, que eu entro na fuga para perto de ti. Parem as heróicas, as tubas, os arcos, pássaros em fogo na sala vazia. Parem o sismo, o ritmo da prosa, o baixo, Salvem a folha virada por virar, salvem. Parem as gotas, as águas, o depois do meio-dia, o susto. Parem as valsas, o coro, eu choro o choro. Parem para já. 

Parem a sétima, a nona, a quinta, a feira, parem os macacos a brincarem com a orelha. Parem a batuta, a truta, a dor, parem que me calo mas não sei calar amor. Parem os risos, a bula, a burla, o indizível no libreto. Parem o intervalo e a capacidade de perdoar. Parem o pano, as cordas, a baqueta, parem Romeu e Julieta, não me digam que acabou. Parem o bombo, o gesto de ateu, o gato na janela. Arranjem outra viela. Parem para já. 

Parem o mundo novo antes da descoberta, a impressões do elefante, salvemos uma canção. Parem as tulipas e as prostitutas, o cardeal e o candelabro, parem o rio, que está a subir, senhores, parem, parem. Parem o desnexo, a cacofonia do sexo, o acorde final, parem, não faz mal. Parem o druida, o beijo, o crescendo, o compasso no traço, parem de fazer assim: "mundo sofre em cor, língua é bem melhor, mundo é todo igual? não, mas não faz mal". Parem com ciências e escalas e marcação, com termômetros e metrônomos parem a ocasião. Dispensem os fadistas, queimem as revistas, deixem-nos sem paz. Parem as guloseimas engraçadas, as fadas, as feias adormecidas, o carrossel. Parem a policia! 

Há uma emergência aqui. Aconteceste. Aconteceste e o tempo não volta mais.

(2010)

segunda-feira, 24 de junho de 2013

New York Loves Me

O amor é estranho, mas quero já. Quero parar a avenida, soltar papagaios, aprender a voar. Não me bastam as paisagens, nem  sonhos, nem o vinho gelado. Quero um amor para cumprir, ora depressa, ora devagar, um sabor a eternidade debaixo da língua - um desatino sem ponteiros. Quero a vida como ela deve ser: arrebatada e curiosa, grudada ao resto pela coisa simples e imensa de poder amar. Amar e voltar a amar. Amar e transamar. Amar e desmaiar em cheio. Amar e ouvir a palpitação do mundo no peito da amada. 


Não me servem os palácios, ou os jardins, não me serve a sabedoria dos antigos ou o drama dos poetas. Não me servem as cores da primavera, ou os cânticos, as cegonhas, ou cerejeiras em flor. Tenho um amor à minha espera e é tempo de ir. 



Quero susto e mão dada e ternura de queixo arranhando queixo. Quero o perfil visto e revisto num dia inteiro, num fim de semana-sofá. Para sempre, aqui, como nos filmes que importam mesmo. Quero a liberdade de saber tudo o que há para saber de beijos e gestos e coisas assim. Quero sobreviver à tristeza cheirando o perfume dela, furando as telhas dos meus dias, deixando o que é bom entrar. Quero vestir-me de linho sem medo-ridículo, uma praia que seja só praia e nós, um festival de histórias que não interessam nem tenham que interessar. Quero o swing arrastado e salgado dos corpos a derreter. Quero uma mesa que sirva para tudo, um Deus que faça sentido. 



Não se duvide: O amor é para comer. O amor é para comer e chorar por mais.

Era outra coisa

Por um fio se perde ou se ganha, se desvia ou se encontra, se mata ou deixa viver. No tempo da verdade, o prometido, havia um homem sentado a mexer na terra e olhos prontos a viajar com o vento. No tempo da verdade, esquecidos que estamos do sonho, havia corropios de gente grande e tremendas decisões dos miúdos na rua. Não se pensava em castelos, nem outras defesas, nem noutros degraus. O dia pintava-se de branco e deixava-se sujar pela manhã, distraído.

No tempo da verdade, se tens espelho que vejas de frente, não havia rasteira sem amparo, nem beijo sem beliscão. Na tua mão, nesse tempo, contavam-se histórias de grandeza de mar-alto e suavam-se desejos, como um medo a derreter. 

No tempo da verdade, a escola de pedra da gente era a escola de todos e o mestre zarolho, despenteado, brincava às coisas de contar e recortar até adormecermos inteiros. Não havia tempo para o absoluto, no tempo da verdade. Tudo podia ser e nós achávamos graça.

Quarta paragem

Viena é balofa e engraçada, não sei dizer de outra maneira: Valsa e cerveja. Pum pa pum pa pum pa pum. E vira.
Não tem a grandiosidade serena de Paris, nem a vibração cosmopolita de Londres. Não tem aquele prato ou aquele cheiro de engate… É um resultado germânico de loucura e aplicação metódica, mas gosto dela. 
Viena é turca e vive em bares estranhos, em cemitérios bem postos, com cavalinhos a deixarem claro que passaram. Viena canta alto e canta de alto mas é silenciosa.
Fez tudo para o imperador e um barraca com chafariz para os representantes do povo. Não importa. Tem uma estranha ternura que, olhando bem, é formosura.

Terceira paragem

Posso dizer de Cracóvia que não é loira. É morena e sabe a maçã. Há em Cracóvia um oração à espera das mãos juntas, uma sopa que é pão, um milagre dos homens. Vive na exaltação dos corpos e da desinibição das almas. Em Cracóvia faz sentido parar. 
Cracóvia tem aquela praça que é uma chapada nos que imaginam Cracoviazinha e tem jardins nem feios nem bonitos, por onde quer que se vire. Tem Egito e política e a chaga de outras dores redimida em comércio. 
Cracóvia ainda se defende, abre as muralhas e tal e coisa e noite e gente, e música e mais, mas ainda se defende. 
Não há nada melhor do que baixar-lhe a alça e beijar-lhe e ombro. Depois ir embora sem olhar para trás.

Segunda paragem

Praga é uma menina bonita sentada com ar triste. Uma festa em movimento, uma cidade partilhada. É uma praça, uma ponte, um castelo, uma rua do Porto. Não se conhece só passando por lá. 
Praga vai sendo de bar em bar, americana, irlandesa, escocesa, portuguesa, não quer saber. É jazz. Acha graça que lhe achem tanta graça e não planeia mudar ao ritmo dos tempos. 
Os verões em Praga podem ser tão libertadores quanto as primaveras; e sê-lo-ão quando caminharmos sem medo dos perigos da calçada, com o coração numa mão e o copo na outra.
Hei-de voltar a Praga em dias de menos cepticismo, a saber dizer olá em checo, a saber dizer até já em holandês.

Primeira paragem

Amesterdão sabe-se diferente. Tem a altivez descontraída das meninas de meio-sorriso. É susto e desejo na primeira montra, um corrimão para perdidos em forma de canal. É outra Europa. 
Amesterdão envelhece com classe, de linho, ligeira; no meio de uma ponte, sem necessidade de escolher a margem. Não é imperial, nem eloquente, é uma contenção meiga pintada a castanho. A cidade tem prefumes diferentes, fumos diferentes, e uma brisa que vem com a bicla-echarpe e nos transforma o dia. Vontade de passar-lhe a mão pelos cabelos, deixar uns quantos fios caírem no rosto.
Amesterdão é na boa. É da boa. É mesmo o que precisamos tantas vezes sem sabermos. 
Não é a minha cidade. Mas quase morrer em Amesterdão é melhor que quase viver em muitos outros lugares.

Viajar

Enquanto não vem

Não me importa que não sejas tudo esta noite.
Basta que sejas na noite um sorriso sincero,
O conforto da presença, a graça do afecto.

Não te quero para a vida, quero-te na vida
Como quero ao mar, ao sol, e ao livro que tenho lido.
Uma peça que estremece ao encaixar.

Não tenhas medo das palavras exageradas,
Que o exagero faz parte dos primeiros tempos.
É a taça onde se verte e sorve a descoberta.

Não te chateies com os que passam
E com os que não passam mas espiam de longe,
Porque temos avenidas largas e o caminho nas mãos.

Não compares isto que temos com o passado .
O passado, mulher, tem sempre de triste e glorioso
O que não tem de repetível e verdadeiro e nosso

Não encolhas os ombros no fim da tarde, 
Porque a indiferença é comichão levezinha
E mata fadas ao minuto, por onde quer que andem.

Não te esforces para adivinhar o Inverno,
Que a tua magia é de feitiço não é de sina
E a gente sabe bem no que tudo isto acaba.

Não fujas da incerteza só porque é incerta e fria.
Quando a candeia dança no escuro
É um fósfero gigante, já não se tropeça mais.

Sim, dá-me a tua mão, como recomenda o Pessoa.
Vira os olhos para mim, já sabes de cor.
Se não houver arroubo, há-de haver consolação.

(2009)

domingo, 23 de junho de 2013

Sofia

Eu gosto de Sofia.
Sofia é bonita.
Não tem olhos de céu, nem de mar,
É outra coisa.

Sofia tem saudades de não pensar.
De ser só bonita e menina
E andar mais ao sabor do vento
Que das horas.

Sofia é de dia o que é de noite
Em espanto e dor.
Maciça demais para a falta de rugas.
Severa demais para um sorriso assim.
Contida demais para tanta luz.
Demais.

Naquela tarde hei-de puxar Sofia
Ela há de levar-me:
Há de falar-me de fantasmas
E de medos e desejos.
Há de confessar os meus pecados
Até ficar baralhada o bastante;
Há de corar por uns instantes.

Há de por as mãos na terra.
Há de mergulhar na terra,
E lembrar-me entre dentes
que somos mortais

Sofia há de decidir ir ao Evareste
Ou à Lua. Ou ao sonho, sem voltar.
Há de gritar a decisão.
e baixar as armas, devagar;
Bocejar o cansaço de guerreira.

Sofia desconfia de tudo isto.
De que esta tarde espreita, pertinho.
Mas não quer saber.

Mulher cedo demais:
E que mulher!

Soy hombre, Duro poco

Esta saudade dói bem mais que a dos livros. Aperta o peito, afasta o sono, às vezes traz tristeza da séria.
Tem forma e a cor das coisas que fazem lembrar de ti, de todas as coisas. Passa na rapariga que também é loira, passa no carro igualzinho ao teu, passa na canção em tom menor e fica.
É mais do que vontade de ter perto. É vontade de ter perto para fazer feliz, só feliz, nada mais que feliz, até que coisa nenhuma no separe. Ámen?
- Numa praça qualquer, quando o calor estiver indo embora e o teu corpo se cansar, fecha os olhos e lembra a velha certeza: És mais que o melhor dos meus sonhos

Shiu

Queria escrever sobre Paris mas não sei. Adjectivar é fácil. Contar impossível.
É que eles não sabem da mistura da tua luz com as luzes da cidade. Do teu ar deslumbrante-reguila junto às personagens do tio Walt nem do espanto na Roda Gigante.
Ninguém percebe a força do teu abraço no Quartier Latin. Ninguém percebe “dad, it´s just a picture” ou “congratulations”, ou “bonjour”. Ninguém.
Acho que cidade nos deixa assim… arrogantes e felizes. Com uma sensação de exclusividade, de feito à medida, de dias-alta-costura.
Em Paris voltei a falar com Deus. Em Paris até as putas são mais bonitas.

(2007)

Estate

Não tenhamos vergonha de gostar tanto assim, de sorrir ou chorar tanto assim quando percebermos a maravilha da coisa. Festejemos a vida sem data.
Sejamos beijinho na vontade do beijinho e mão-na-mão se muito longe.,“Bom dia” entusiasmado, sem porquê, conversa animada no elevador, stop no elevador, se pudermos.
Recebamos o conforto da voz amada, que na hora de dormir nos despe de chatices e prepar...a para a novidade dos sonhos. Corramos sempre, no limite do impossível para um autocarro amarelo, para o concerto atrasado, para o amigo magoado.
Tenhamos também, de vez em quando, uma pitada de moleza-tartaruga porque o tempo sem ponteiros pode e deve ser um espreguiçar daqui ao próximo verão.
E verso pimba no passeio, porque não? Trá-la-la Tra-li-la E livro difícil à espera na toalha, e sorverte à colherada sôfrega e terraço fim-do-dia com tremoços e poesia. E assim por diante (ou para trás), sejamos felizes.

Depois

A discussão quase deu em violão partido, mas os corpos perdoaram quando a alma ameaçava demorar na tarefa. Três libertações de Cuba depois, éramos quadro desalinhado, incômodo para a vizinha de cima, para o porteiro em baixo, festejos no chão. Éramos a mocidade do sonho e o picante das primeiras descobertas. Éramos o abusar da palavra bendita, mal escrita, que aprendemos com os poetas italianos.
Pensamos na imortalidade e promessas afins, gargalhando no escuro, fumando sem gostar. Tivemos direito a acreditar e a perceber na mesma hora. Desculpamos as falhas do mundo, da rolha desfeita no vinho perfeito, fizemos amor. E o que por fim fizemos do amor já nem sei. 
Olha, volta rápido. Não te deixes ficar sozinha pelas paisagens que são dos dois; e traz-me um presente por embrulhar quando já não me lembrar do pedido.

Luminosa Manhã

Nada melhor que acordar no teu corpo, 
que sonhar a tua pele para logo realizar, 
nada.
Submergir, vasculhar, garantir 
que não há espaço de ti interdito, 
que não há lugar de nós imune ao desejo. 
Tentar iludir a beleza verde-esmeralda fitando-me,
e cair exausto, desistente. 


Quando um dia lembrarmos sorriremos. 
E isto importa mais que a paz dos tratados, 
a biografia dos revolucionários tristes, 
ou a bandeira nua acenando ao futuro.
Não há pressa. Há urgência.

(2007)

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Verão

Quando fores embora, na tarde adivinhada sem búzios, deixa um pouquinho de céu para eu me aconchegar; uma carta que fique eternamente selada na nossa mesinha-boa-noite e uma negação que aqueça os próximos Invernos. Quando partires, querida, parte no chão a taça que sobra, fala dos desenhos e respectivos anúncios, exibe a primeira receita sorrindo. Quando o nós tiver sido coisa para contar em jantares-quase-amigos tenha eu mais dois palmos de coragem, ria o bastante dos portuguesismos sobre saudade e viaje ainda por conta da vela.
Não sabemos dizer adeus. Não se aprende.

Muito

Somos as palavras desfazendo-se na velocidade do desejo. A etiqueta nos murros japoneses, a surpresa dos gestos. Somos o jacto que parte para todos os lugares, a relva na capa quando a cama está longe. Somos fotografias esquecidas porque assim tinha que ser. Somos o quadro-quarto que vigia sem ponteiros, o telefonema que reclama. Somos o muito do muito do muito do muito.
Somos a canção-violão com o pato aprendendo a ser rosa, somos táxi que acorda ao fim da tarde e a promessa de Serralves em rota-chá. Somos o abraço sob a chuva, a padaria entreaberta, e um mickey escondido.
Somos as mensagens que não aguentam , o toque dos lábios que espanta e acalma o dia - a meninice brincando com os nossos medos. a vitória sobre a morte naquele cobertor. Somos verdade enluarada e uma expressão quase engraçada que quer dizer tu e diz amor.
Neste teatro improvisado, (de Helena sem Tróia e afins) imitamos a vida inteira como se soubéssemos de cor.

Not for sale

Queres um conselho? Volta-te (de costas) e deixa o vento brincar no teu vestido. Ficarás ligeiramente tímida, ligeiramente minha e tudo o resto dará uma bela canção por compor. Não afastes todo o cabelo de uma vez só que suspanse interessa mesmo fora da película. Então desvia o olhar porque a dificuldade apimenta o gesto e beija-me um pouco mais, bem mais, assim.
Se tens dúvidas – mulher razão, executiva dos sonhos – abre o livro velho mas sem poeira e haverás de encontrar uma confirmação qualquer: Venha no diálogo engraçado todo Woody Allen, na descrição da mesa de jantar depois do repasto amigável, ou na última página, espera por ti desde o início dos tempos.
Olha...Vês? A chuva começou a cair. É hora de voltarmos ao abraço de quatro paredes, ao quadro erótico que comprei envergonhado e à cadeira de baloiço que não lembra a meninice mas desequilibra. Hoje é dia de sermos felizes. F-e-l-i-z-e-s. Ostensivamente, radicalmente... fazendo de conta que agora, a hora, é para sempre.

Proposta

Vou dizer-te um segredo, mas baixinho que a tua amiguinha (merda, já são dois diminutivos) está a avaliar-me da cabeça aos pés: se fossemos um pouco mais velhos e eu um pouco mais louco pedia-te em casamento. Deixei de acreditar na coisa mais cedo que no pai natal e ainda há pouco desconfiava seriamente desse teu ar vitorioso, dessa glória meia francesa que dá firmeza aos teus pés. Mas podia ser no Havai e com missa Karaoke.
Faz de conta que não estou xaropado, salva esse pedacinho de tesão que está dizendo tchau tchau ao ritmo dos meus disparates e deixa-me aceder-te uma fogueira de silêncios esta noite. Mesmo que seja verão, que cheire a absurdo e vai acabar mal ou estejamos no meio da cidade.

Cantiga que não foi

És cidade mais antiga
Do que o nome que te chamo.
És perfume de oceano, és luar.
És cantiga descontente,
És a sombra sorridente
E um sono adormecido a despertar.

Do recado que se espalha
Sobra o brasão, a talha,
O barco que já não chega mas sai.
Um truque sempre engraçado
De seres nosso e seres passado,
Um milhafre ferido que não cai.

Na viela mais escura
És o passo bem seguro
E a curva sem razão.
Um destino enviesado
Ou abraço cruzado
Em noite de solidão.
És o grito que se canta,
És o Douro em flor.

Porto de abrigo
Inimigo só de quem não vai.
Além si, além da dor, além do medo e trai.
O próprio sonho.

Porto de abrigo
Casario, margem, riso, lar
Prenda da história que o destino quis desembrulhar.
Fico contigo.

(2006)

Receita Actualizada de Mulher

Que me perdoem as mais distraídas,
Mas saber-se bonita é fundamental.
É preciso que haja careta frente ao espelho.
E uma risada escangalhada por deter.
Que tenha nos dez dedos percepção de mundo
E que os olhos não disfarcem o espanto.
Importa que as rugas não sejam demais -
Só para que o pintor não minta -
E que desde logo se sinta
Que é felina além de mulher.
Pode ter um pouquinho de ciúme.
E de perfume - a mesma coisa, afinal.
Pode também ser infiel de quando em vez,
Mas só no pensamento. Porque sim.
Importa que tenha um sorriso de impressionar Vinicius.
E que de todos os seus vícios
Escolha só um além do homem.
É bom que não se indigne com este machismo,
Se ria do snobismo pobre e se enjoe
Da igualdade a qualquer preço.

Por que sim

Havemos de encontrar-nos naquela livraria onde nos perdíamos.
Passaram muitos anos, mais que a conta - vês-me primeiro, coração disparado, fingindo que não.
Percebo-te no levantar-pescoço-sorriso como só Millor sabe, digo olá entusiasmado, e respondes com outro corado. Temos medo e não é pouco.
Estás linda como sempre e eu, apesar de mais conformado com a decadênca do espelho, encolho a barriga. Consegues disparar como-estás-quase-não-te-reconhecia, e a aquela rugazinha da mentira com graça volta para segundo acto.
Só entro no teu jogo coloquial para propor um café ali ao lado sem esperar o teu golpe: “Não. Vamos ao outro. Aquele do nosso tempo".

Antes das ruas largar I

O menino da máscara azul acordou já o dia dançava. Abriu os braços como que pronto para abraçar a vida e espreguiçou o sono de uma ponta a outra do quarto. Lavou o rosto, fazendo escorrer o bocadinho de madrugada resistente, e sacudiu os cabelos num gesto só.
(2006)

Álbum

Gosto daquela fotografia em que estás assim meia, não sei como, tu. Parece que quase ris enquanto quase dizes: está quase. Deixas que os cabelos se intrometam e não reclamo, faz parte. O fim da tarde comenta baixinho o princípio da nossa esperança, e não duvida a criança: quer o sumo teu ou meu.
Gosto do retrato tic-tac-restaurante-vazio, pensamento vadio aconchegado na pedra. Das histórias do Sr. Avental, típicas, irremediáveis, certeiras. Da coisa esquecida que nos faz percorrer mais uma vez e outra o caminho mágico.
Gosto da escultura-silêncio que o piano desafinado moldou para nossa companhia. E gosto do chachecol-poesia, agasalhando os sentidos. Por nos ver despidos a noite corou, uncometa subiu, uma estrela dançou.
A verdade nem sempre anda por aqui. Mas uma sombra passa e dizes: “eu vi”!

(2006)

sábado, 15 de junho de 2013

Com cartão

Queremos fazer um país sensato
Certinho, limpo, todo transacto
Que dê para mostrar aos amigos.
Queremos destapar os umbigos:
Um piercing de modernidade
Queremos dar a queca à cidade,
Sem látex... o tal preservativo,
Queremos um presidente activo.
Esconder euforias, espirrar suave
Senão migrar, construir uma nave.
Queremos vigaristas de Channel
E tornar museu o nome Manel.
Queremos chique a Torre do Tombo
Como redenção, tocaremos no bombo.
Queremos os títulos, a craveira.
Mas assistimos de pé se não há cadeira.
Queremos barato vindo da China.
Que fale francês ainda a menina.
Que fique na foto o dia primeiro.
E que a saudade venha com dinheiro.
Queremos mudar a bandeira, a cor,
Um fado ligeiro, sem mágoa ou dor.
Que a seta no escuro seja certeira
E uma Casa Branca à la Siza Veira.
Queremos uma bucha que mate fome.
E navegações? agora só ponto com.
Não somos de marca. Queremos igual.
Alguém comprasse, vendíamos Portugal.

(2006)

Inocência ganha

Um dia destes, quando tiveres um tempinho, leva-me a passear. Faz-me ver a dança da erva que cresce sem medos, e o orgulho imortal das grandes rochas. Ensina-me como voam os pássaros, enquanto cruzo os dedos por um voo sem asas. Senta-te comigo na soleira de porta abandonada e abre-te de par em par. Diz-me das tuas aventuras maria-rapaz e das bonecas que ainda guardas no baú. Mostra-me os saltos da pedra no lago, e como é maravilhoso cair no ar. Deixa-me sentir as primeiras rugas das tuas mãos, as primeiras rugas dos teus sonhos. E explica-me que o simples não é fácil. 
Depois, olha-me com a tua mágica paciência, até que sorria o sorriso que vivi para te mostrar.

(2006)

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Toucher

Houve um tempo do velho piano sorrir, e valsear mais que Viena inteira. Houve o tempo de procurar nocturnos adivinhando a lua, perdendo um pouquinho o sono, sem que importasse tanto assim.
Hoje passa dias-sonata que não acabam, troca os andamentos, quase que ri. Não abandona a elegância do preto, tem orgulho no sobretudo-pó. 
Estremeceu muitas mulheres  Lembra quando a morena se abandonava na cauda e a ruiva pálida olhava por dentro de copo meio-vazio na mão.
Teve muitas profissões: maestro de encontros meia-luz, compositor de sorrisos, afinador de almas. Sempre achou que pelos dedos se perde e salva o homem. E que no toque há mais poesia que em mil sonetos. 
É dono de si, pouco dado ao dós, desdenha do sol, e sabe que lá não é o seu lugar. Cheira às coisas que contam histórias e são feitas para durar além.
Nunca foi ver o palco, mas da janela gasta consegue espreitar o mar.

Passo

Não excluas o mundo dessa tua paz morna,
rumba, tango.
Dessa coisa que se agita no ar
e rodopia nos sonhos.
Que os cansa até que adormeçam
e trata de aconchegar num beijo.
Desse armistício assinado a carícia na nuca,
a banho de pétalas,
a cheiro pele-mar.
Desse lento chegar perto
segredando, dessa mão atenta no joelho
ausente, desse ir como quem vem,
Desse ir-se.
Haja o que houver,
que essa ternura nos guie e
até o tempo se arrepie só de sentir passar.
A hora já não é de azar.

Não prestes atenção

Atiro-me ao dia de barriga para baixo. Deixo chegar o cansaço sorridente e tudo pouco ou quase nada me importa. Escuto uns zumbidos vizinhos e penso em orquestrá-los só para ti. Estou de bem com o absurdo do mundo e ele, meio por favor, tolera a minha resignação pachorrenta. 
Há uma rede esperando espreguiçar e um abandono feliz no vinho que não acabou. Há balanço de arrasto nos pés e nos ombros prontos, exaustos, sem dono. Há fadigas, cantigas, cartas por escrever espalhadas no chão. Há línguas enrolando a espera até a deixar tonta. Há terra cheirando a terra e um sonho banal com vista para o mar. Há aquele trago doce nas palavras inúteis e nossas e eternas. Há um esquecimento que valseia suave para nos vir beijar a pele. Há mais do que queira, do que possa contar. 
Sei menos, sou mais. Acho que desaprendi a palavra adeus.

Livro Aberto

Desempoeira a tua estante velha,
Escorrega na telha que não há,
E vem sem medos dançar à lua:
O céu é todo aqui, um pouco lá.

Descalça teu calo, não penses,
Deita a ampulheta, embala o dia.
Espreguiça o sono, escuta também:
É recado do amor que se assobia.

Traz muitos dedos em cada mão,
Conta as pedras do passeio, esquece!
Nunca morre nosso sonho, nunca.
Só que cansado de abraçar, anoitece.

Ruas Largas

O homem da máscara azul saiu de casa. Fez-se galante-caminhar e esqueceu as amarguras. Sentou-se no café da moda e não achou piada à chávena vermelha 
O homem da máscara azul fez de um guarda-chuva guarda-sol, atirou para longe o relógio de plástico e decidiu ser feliz.
Não se sabe se falava sério quando anunciou a grande viagem. Contaram-me que comprou oito ou nove ou dez mapas na livraria Garrincha. Aquele funcionário muito alto, alemão por desporto, riu sem mostrar nada quando o Homem espalhou as cartas no chão e desatou a ler o céu.

Num indo e vindo

Havia uma promessa de coisas boas na primeira japoneira a contar das escadas. Havia o sermos inúteis e definitivos no andar da noite. Havia a certeza da imperfeição e o desafio desavergonhado dos limites. Havia o sabermo-nos de carne, sangue, saliva e auréola na mão. Havia o alivio dos corpos estendidos, a rebelião sôfrega dos olhares. Havia quem não passasse e os que passando não importassem mais. Havia ruas com esquinas boémias naquele céu, e passos sobre as ondas num imaginado mar. Havia muros que se voavam rasante, e flores que, de tão livres tão nossas, faziam dos sentidos um jardim. Havia o sim. Havia o tropeção desajeitado de quem sai em duelo com a calçada. Havia a persistência do vinho nas bocas, a dos beijos nos brindes, a dos desejos no amanhã. 
Havia o não querer acordar. Havia o acordar-se.

(2005)

Recinto ´05

Um atropelo, outro atropelo, mas mão no ombro desconhecido que tudo sara. A negociação esperta dos consumos que não se faria numa loja da Baixa, e os concertos de que todos ouviram falar e quase ninguém viu. 
O ritual clássico, (às vezes exótico) do engate, por entre amigas que atrapalham e amigos que empurram. Os abraços sentidos, adiados, embriagados, que dizem aquelas coisas que sempre se achou piroso dizer. Os cânticos de curso que fariam distraídos imaginar que por entre beijos haveria guerra, chão sujo onde já não custa mais sentar. 
O sol que nunca deixa de nascer, a coisa mais certa. A barraca fraterna, aquela eterna, onde os tiros são mais baratos. Matos de gente, onde a verdade é de todos, mas mente. O indivíduo que não quer beber mais, o colega que teima. Mesmo quando tudo parece não arder, queima.

domingo, 9 de junho de 2013

No papelinho do bom-bom

É preciso sonhar. É preciso fazer castelos que se desmanchem e sorrir. É preciso atar os atacadores olhando para a amada. É preciso não precisar com urgência patológica. É preciso não dar respostas e responder. É preciso correr, , sem destino, à chuva ou ao sol. É preciso formol, seja isso o que for. É preciso não colher uma flor, mas passar por ela. É preciso que estas palavras não soem a Drummond - mas também é preciso não temer plagiar o que é bom. É preciso achar um voo de papagaios romântico, é preciso acordar a primavera do sono de meses, é preciso parir olhares siameses. É preciso uma cadeira e um carrossel. É preciso um pincel, não importa a tela. É preciso girar o pescoço e não desequilibrar. E preciso lembrar e abandonar o sótão. É preciso dançar. Ou não. Ou sim. Ou não de novo. E é preciso sorrir, sorrir para o triunfante anúncio do mundo. Lá no fundo, e apesar, é preciso dizer e calar.

Desliza



Aqui o que é velho, soprados os restos de borracha e apara, e o que vier.
A frase título do caderno de rabiscos é roubada do Paz. 
Abraço aos pacientes que por aqui passarem.