domingo, 10 de novembro de 2013

Quando era criança

Acho que quando era criança não gostava muito de crianças. Preferia estar perto dos adultos. Daquelas conversas na madrugada, eu no sofá, daquele passado com pianos a preto-e-branco e castanho. Daqueles adultos super-heróis de capa, espada, voo, raios, e dos capazes de mudar o mundo só de olhar as estrelas ou adivinhar átomos. 
Saí da criancice para gostar mesmo só das minhas crianças. Caetano Veloso a adormecer o Pedro, vaca-urso para chegar perto do Francisco. Às outras crianças olhava como quem olha o septuagésimo quadro num museu londrino. É que as outras crianças não podiam chamar ditador a Platão ou desiludir-se com o Kundera mais recente, além da agravante: Pairava um nevoeiro no tecto, no olhar dos outros sobre mim perto das outras crianças. A ameaça de que um dia aquelas crianças viriam viver na minha casa, rasgar o jornal por ler, fazer sons muito agudos, quebrar a corda ré à Maria.
Entretanto, nos últimos anos, abobalhei. Sem chegar a ganhar muito jeito para, mas abobalhei. Não sei se é do relógio, mas sei que não tem hora. No elevador olhando pro chão, no colo da empregada, no carrinho-padaria, na foto-surpresa, na chuva a abrigar-se, na entrada do prédio em trio, com as primas. Que criaturas mais lindas, escancaradoras de sorrisos, relativizadoras de ideias, campeãs do sol. Pior: amparo a queda, rio sem provocação, digo coisas com voz diferente, pego ao colo só por pegar, pergunto sobre jogos e dou parabéns aos pais. 
Tenho testado a origem: será do sotaque, será da saudade, será de ir morrer um dia. Sempre o mesmo resultado: simples abobalhamento agudo, quem sabe se crônico, sempre feliz.
Escrevem que não mudamos mais a partir dos nossos cinco. Pode ser. Até o dia em que começamos a mudar com os cinco deles.

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